quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Apto 106 | Marina Colasanti

Apto 106

A encomenda chega pelo correio em sucessivos volumes. Nas caixas de papelão as peças brilham plásticas, folhetos coloridos ilustram segredos de montagem, porcas, parafusos, elásticos garantem firmeza.

Trabalha à noite. No encaixe desliza a ponta que em outro encaixe se prende. Gira a rosca. Por partes cresce o conjunto. E o pincel de marta desliza espalhando verniz. Por fim, prendem-se as asas.

Pronto, de frente para a janela aberta. Sobe-lhe ao dorso Aperta os joelhos, dá ordens, puxa alavancas. Movem-se as asas lentamente. Sem vôo, porém, quedas as patas que repousam sobre tacos. Insiste, ergue o próprio corpo para frente em ajuda de impulso. Nada. Apenas o ar se agita, tangido pelo vaivém mecânico das asas.

Inutilmente escreverá para os fabricantes. Receberá, prezado senhor, explicação de mal-entendido, não tendo sido o vôo mencionado em qualquer documento informativo concernente nosso produto nosso produto remetido em data aprazada conforme guia do correio nº B-45/75301.

Um erro, um mal-entendido. Como entender de outra forma? Só por isso comprou. Tudo levava a crer. Tudo. Agora lá está diante da inútil janela. Escultura cinética enfeitando a sala, cavalo alado morto.

Marina Colasanti | A Morada do Ser

Um comentário:

  1. Pessoal, esse é um dos textos que disse que me baseei para fazer o vídeo da minha janela...
    Vou postar o outro tb!!
    grande beijo a todos: Juliana .Kis

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